A despeito do que tem sido divulgado, o slogan “Mais Brasil, Menos Brasília” a cada dia se mostra apenas uma peça retórica, uma peça de propaganda.
Desde a campanha eleitoral para a presidência da República que o então candidato Jair Bolsonaro tem falado em diversos momentos a respeito de descentralização. Ao antecipar que o economista Paulo Guedes seria o ministro da economia angariou milhões de votos, porquanto o futuro ministro passou a defender uma pauta descentralizadora. Para chamar a atenção começou a utilizar termos e expressões típicas do vocabulário federalista, tais como subsidiariedade, descentralização, mais autonomia para estados e municípios, o que obviamente conquista a boa-vontade da população e dos cidadãos menos afeitos à complexidade dos sentidos implícitos nestas palavras, e cansados da centralização e burocracia escorchante.
Na medida que passam as semanas e meses o que vemos é que a ideia de descentralização se parece cada vez mais com um engodo. Primeiramente, todas as ideias citadas passaram a ser compreendidas no termo pacto federativo, o qual, em si mesmo, já é uma redundância, porquanto o adjetivo “federativo”, etimologicamente tem o sentido de pacto, de aliança. Assim, o tal pacto federativo seria, então, o “pacto do pacto”, ou o “pacto pactativo”. Secundariamente, o que foi proposto pode até ser um pacto, mas de modo algum será federativo. O sufixo “ivo” (do latim “ivus”) indica tendência para algo, que neste caso seria a tendência para uma federação. Na verdade, o que o ministro Paulo Guedes propôs foi um pacto tributário, e não um “pacto federativo”. Em terceiro lugar, porém, não menos importante, as propostas até agora encaminhadas seguem em direção contrária à descentralização tributária.
É preciso entender que em uma federação pode existir a descentralização, mas esta é apenas circunstancial. A essência de uma federação, ou de um estado federal, não é a descentralização, mas sim a multicentralização. Isto quer dizer que não existe apenas um centro de poder, mas vários centros de poder. Portanto, falar em descentralização não significa a defesa ou a intenção de criar ou manter uma federação. Até os estados unitários podem ser descentralizados.
Passados os primeiros momentos de encaminhamento das medidas prometidas em campanha, começaram a surgir as outras propostas consideradas importantes, as da reforma tributária. O poder legislativo, sentindo que poderia perder o protagonismo, em suas duas casas começou a tratar de apresentar as próprias propostas. Não demorou muito e algumas foram apresentadas, enquanto o governo declarava que estava trabalhando na sua proposta tributária. Tratava-se do retorno da CPMF – Contribuição Provisória por Movimentação Financeira.
O presidente da República afirmou publicamente que não aceita o retorno da malfadada CPMF. A proposta negada pelo chefe do executivo visava tão somente unificar alguns tributos federais, IPI, PIS e Cofins, reduzir o imposto sobre a renda e modificar a sistemática das incidências sobre a folha de pagamento, restringindo-se a reformar alguns tributos federais, mantendo a sistemática estadual tal qual como é hoje. Na verdade, a tal proposta, por ter “vazado” antes do tempo, foi motivo da demissão do Secretário Geral da Receita Federal, o economista Marcos Cintra. Ainda que esta proposta não receba seguimento, e que o Poder Executivo ainda não tenha apresentado a sua proposta oficialmente, já se notam as tendências centralizadoras, contrariando o que foi prometido aos eleitores. A Receita Federal, por exemplo, está extinguindo diversas superintendências, como a de Belém e a de Curitiba. Assim, o que parece é que está havendo uma inversão do slogan de campanha que de “Mais Brasil, Menos Brasília” transita celeremente para “Mais Brasília, Menos Brasil”, conforme ironizou em um artigo, o advogado e professor, Fernando Facury Scaff.
Mas essa tendência centralizadora é comum também no poder legislativo. A PEC 45, que teve origem na Câmara dos Deputados, de autoria do economista Bernardo Apy, por sua vez elimina a autonomia dos estados e municípios de elaborarem e executarem as suas próprias politicas fiscais. Essa PEC determina o fim das parcas competências tributárias destes entes subnacionais, ao extinguir tanto o ICMS quanto o ISS. O pouco que restará de competências tributárias continuará a recair sobre o patrimônio, ou seja, o IPVA, O IBTI e o ITCMD, que tem rala arrecadação. Obviamente, tais competências, submetidas a uma lipoaspiração tributária, proporcionarão magérrima arrecadação, insuficiente para a manutenção dos custos e despesas dos entes subnacionais em questão.
A PEC 45, apresentada pelo deputado Baleia Rossi, supostamente busca a simplificação do sistema tributário nacional unificando tributos, ao extinguir os tributos federais IPI, PIS e Cofins, bem como o ICMS (estadual) e o ISS (municipal), todos incidentes sobre o consumo. Para substituir tais tributos será criado um tributo sobre valor agregado que será denominado IBS – de competência da União, dos estados e dos municípios – e um exclusivo da União, um tributo seletivo, sobre bens e serviços específicos. Sob a desculpa que se procura a simplificação tributária e a manutenção da autonomia dos entes subnacionais, o que se faz é justamente reduzi-la, pois somente terão autonomia para alterar alíquotas, mas não mais criar ou extinguir os tributos que julgarem necessários às suas necessidades. O IBS será regulado por lei complementar e composto por alíquotas federais, estaduais e municipais, mas segundo o autor da proposta, para o contribuinte não alterará nada porque será único, embora cada ente possa alterar a sua alíquota. Uma das vantagens dessa proposta é que nas transações interestaduais e intermunicipais deve ser aplicada a alíquota do estado e do município de destino. Na verdade, o grau de autonomia dos entes subnacionais será muito restrito e ainda dependerá de cálculos realizados pelo TCU.
Mas não fosse isso, ainda existem outros pontos que induzirão maior centralização e complicação. Um deles é a Devolução tributária. Parte dos tributos pagos pelos cidadãos pobres serão devolvidos por intermédio de mecanismos de transferência de renda. Obviamente, em um primeiro momento isso parece muito bom, mas a verdade é que os cidadãos somente receberão essa devolução se informarem seus CPFs no momento da compra e se forem cadastrados em programas sociais. Isso implica que o controle do estado sobre o cidadão desprovido de recursos aumentará em vez de diminuir. Não dá para deixar de perceber que o demônio totalitário esconde sua pele sob tecidos preciosos e belos.
O outro ponto é que a arrecadação e a distribuição da receita do novo tributo entre os entes federais deverá ser feita por um comitê gestor, que se responsabilizará pela regulação do tributo. Ora, numa federação, e até para que haja de fato uma federação, cada um dos entes deve ter ampla autonomia tributária. Um comitê gestor será apenas mais um meio de submeter ainda mais os estados e municípios à centralização excessiva da União Federal.
No mesmo sentido caminha a PEC 110/19 do Senado Federal, porquanto também extingue o ICMS e o ISS.
O mais estranho é que outra proposta, a do imposto único, de autoria de um grupo autodenominado BRASIL 200, que, até onde se sabe, conta com adesão de empresários do setor comercial, os quais supostamente deveriam trabalhar pela descentralização do estado e autonomia dos entes federais, também é altamente centralizadora, haja vista que retirará os impostos dos estados e municípios e os concentrará totalmente na União Federal.
Todas estas propostas, embora apregoem que buscam a descentralização, caminham no sentido de terminar com o que resta da autonomia dos entes subnacionais, centralizando os recursos para depois supostamente realizar a redistribuição de modo mais igualitário. O que é isso, senão um estado unitário, com matizes totalitários?
O que se nota, portanto, é que tanto no estado quanto na sociedade, existem sérias barreiras culturais, paradigmáticas e cognitivas que direcionam qualquer proposta para ampliar a centralização dos tributos e não descentralizá-los.
Assim, a não ser que realmente a proposta do governo, ainda não apresentada, seja descentralizadora, no sentido de ampliar a autonomia tributária de estados e municípios, veremos apenas tentativas de simplificação que no final não resolverão definitivamente os problemas brasileiros.
Um autentico federalismo, como é o federalismo pleno proposto pelo Instituto Federalista, somente existirá com a autonomia tributária dos estados e municípios. Fora desse quadro permaneceremos com um federalismo nominal, ou orgânico, no entender de alguns, enquanto o país não consegue decolar, desenvolver-se e explorar o seu potencial máximo.
A proposta federalista de reestruturação tributária, e não de simples reforma, baseia em alguns princípios que são:
- retirar a cachoeira de tributos de sobre toda a cadeia produtiva e cobrando-a os tributos somente no final; quer dizer, a produção não deve ser tributada, mas sim o consumo.
- estabelecer a autonomia tributária para estados e municípios, sem determinar quais ou tais devam ser estes tributos; obviamente, esta permissão deve estar contida dentro de certos limites.
- determinar que uma parcela significativa dos tributos permaneçam onde foram gerados. Supomos que 50% ou algum valor próximo deste percentual deveriam permanecer nos municípios.
Cremos que tais princípios, que não são exclusivos, poderão revolucionar o modo como o estado é financiado no Brasil e, decorrentemente, o padrão material de vida da população iria aumentar exponencialmente, porquanto os preços dos produtos iriam diminuir drasticamente. Mais do que isso, quanto mais recursos ficarem nos municípios, mais o cidadão exercerá controle sobre o que é feito ou deixado de fazer no lugar onde ele vive.
Sem estas medidas plenamente federalistas, não existirá nenhum verdadeiro pacto, contudo, nós, os cidadãos brasileiros, continuaremos pagando o pato supostamente federativo!