Por Ivomar Schuler da Costa
Acredito que o primeiro ponto que devemos abordar diz respeito à impermanência de qualquer modelo político. Quero dizer, um modelo politico aplicado a uma sociedade jamais será estático. Ele estará sempre se modificando. Essas mudanças podem ser muito pequenas, quase imperceptíveis. Geralmente elas não abalam o sistema no curto prazo, mas podem provocar rupturas a longo prazo.
Como um país e seu modelo de organização política não são uma ilha, ou seja, estão inseridos em um ambiente maior, e este abriga diversos fatores que podem atuar sobre o sistema politico do país, dependendo da força e da quantidade desses fatores, e também da capacidade interna de resiliência.
Os modelos de governos dos países têm certas características que fazem com que assimilem as influências externas e diminuam o seu impacto internamente. Porém, pode chegar um momento que não somente a quantidade ou a força desses fatores atuem no sentido de provocar uma ruptura interna. Se este modelo, o qual estabelece uma estrutura especifica e de acordo com as condições internas, tiver esgotado toda a sua capacidade de adaptação, restará ou a ruptura e dissolução dessa estrutura, e com possibilidade de destruir da nação como um país organizado, ou a implantação de uma nova ordem, uma estrutura diferente que possibilite a assimilação dos fatores externos.
Temos aqui algumas condições que convém prestarmos atenção.
Se o macro-ambiente, o ambiente internacional, o ambiente externo ao país se tornar muito instável, mudando rapidamente seus inúmeros fatores, a estrutura do sistema político deve ser alterada para suportar estas influencias externas altamente cambiantes. Se a estrutura interna for muito rígida, poderá acontecer de em algum momento, os fatores internos começarem a gerar crises internas, provocando rupturas graves.
O que vemos atualmente é que o ambiente internacional está mudando com uma velocidade espantosa. A instabilidade está instalada em diversos setores: político, econômico, social, cultural, legal, ecológico, etc. Assim, parece-me que temos de tratar de alterar o mais rapidamente possível, com certa urgência, contudo, com a devida cautela, a estrutura política do Brasil, bem como os seus modelos de estado e de sociedade, tendo em vista a preparação para as ondas de transformação que já estão causando rachaduras, movimentos sísmicos e desabamentos em todos os sistemas sociais, políticos, econômicos, etc.
Acredito que uma das características de uma possível nova estrutura do estado brasileiro, visando preparar-se para sobreviver às transformações mundiais em curso, é estabelecermos não um estado mínimo, como querem os liberais, porém, muito menos um estado gordo, hipertrofiado, mastodôntico, como temos agora. O contexto mundial que já está instalado, mas que aumentará a instabilidade nos próximos anos, exigirá de nós um estado inteligente, que perceba com antecedência as transformações globais e se ajuste adequadamente, tornando-se flexível.
Esta flexibilidade implica a capacidade de ajustar-se para receber os impactos internos, mantendo o mínimo de organização social e funcionalidade governamental, o que envolve também, e necessariamente, que a população consiga manter pelo menos níveis e padrões básicos de sobrevivência com dignidade.
Mas o que caracterizaria especificamente estas inteligência e flexibilidade?
A inteligência, neste caso, e de um modo bastante resumido, seria a capacidade de fazer a leitura das tendências e fatos que estão ocorrendo em nível mundial, observação dos processos mundiais e suas variações, monitoramento dos fatores críticos, isto é, aqueles que caso se modifiquem dentro de determinada faixa de variação, poderão gerar efeitos positivos ou negativos para o Brasil, bem como a capacidade de integrar estas informações de maneira a formar um quadro indicativo que possam levar as autoridades e a sociedade a tomarem as decisões pertinentes e a realizarem as atividades necessárias para a autoproteção. Mas essa inteligência deve estar voltada para dentro também, numa constante avaliação dos fatores internos de coesão e de resiliência, evitando a miopia de olhar para um gato enquanto o outro gato come o peixe.
A flexibilidade implica a transformação das estruturas estatais, de modo que os entes estatais nacionais e infranacionais, os estados-membros e os municípios, sejam dotados de autossuficiência e de autonomia para que dependam menos da União Federal. Grande parte do gigantismo estatal brasileiro se deve a alta concentração de competências na União. Deixando apenas competências residuais para os estados. Traduzindo isso para as pessoas que desconhecem a linguagem política, quer dizer que a União, vulgarmente denominada “Governo Federal” concentra muitos poderes, muitas tarefas, de forma que os governadores e os prefeitos, embora tenham de realizar muito em seus estados e municípios, não tem os recursos necessários e nem a autoridade para agir, para fazer o que é necessário.
Considerando que o Brasil é um país extenso e com muitas variações geográficas, se quisermos ser mais ágeis e flexíveis, teremos de desmontar a atual estrutura rígida, concentrada e concentradora. Para tanto, deveremos constituir um estado federal assimétrico. Isto significa que temos de ter uma constituição que ordene o estado e a sociedade, mas os estados devem ter maior liberdade de criar leis adequadas às suas peculiaridades.
No formato atual, O STF inventou um principio constitucional, princípio que não está na constituição: o principio da simetria. Na verdade, este nome é um eufemismo para a uniformidade organizacional dos estados e dos municípios. Todos são obrigados a replicar, reproduzir, a estrutura organizacional da União. Isso gera um custo enorme, pois a maioria dos municípios brasileiros tem menos de vinte mil habitantes, e não tem dinheiro para custear uma estrutura enorme e desnecessária. Assim, num estado federal assimétrico, estados e municípios não precisariam mais reproduzir este modelo anacrônico e caro que tem por finalidade, apenas manter o controle da União sobre os outros entes.
Quando falo que não se trata de um estado mínimo, não estou negando a necessidade e a conveniência de uma economia de mercado.
Partindo deste princípio de federalismo assimétrico, acredito que a melhor estrutura para o estado brasileiro, visando à flexibilidade, seria a constituição de um estado federal subsidiário.
A subsidiariedade é aquela situação em que tudo que pode ser feito pelos indivíduos ou pelas famílias, deverá ser feita por elas. Assim como o que pode ser feito pelos municípios não deverá ser feito pelos estados. Nem o que pode ser feito pelos estados deverá ser feito pela União Federal.
Com a subsidiariedade cria-se uma escala de liberdade de atividades, de esferas de ação, na qual os entes com maior autoridade não devem intervir naqueles que têm menor autoridade, ou âmbito de competências. Essa intervenção somente é aceita em casos nos quais as coletividades localizadas na escala mais baixa de autoridade, não podem fazer por si mesmas. Ai é que as outras entram para ajudar. E mesmo assim, essa ajuda deve ser temporária. Nenhum dos entes políticos que estão localizados na parte mais alta da escala deve assumir definitivamente as competências dos outros. Dessa maneira se instaura um sistema de liberdade, de autonomia, de autodeterminação que permite que cada ente local resolva seus problemas, suas dificuldades. Sem dúvida, isto acaba por desenvolver capacidades que foram excluídas pela intervenção constante da União federal em todos os entes da federação, criando uma dependência desnecessária.
Obviamente, para que a subsidiariedade funcione o sistema tributário deverá ser totalmente diferente do atual e do que está para ser implantado. Para assumir efetivamente todas as tarefas de satisfação das necessidades locais, os tributos não podem mais ficar fazendo turismo em Brasília. Isto é, o dinheiro não tem de ir para Brasília, para depois retornar na forma de fundos de participação.
Outra vantagem importante da subsidiariedade, é que a União Federal, com menos competências, com menor quantidade de responsabilidades para cumprir, poderá fazer muito mais naquilo que importa ao interesse geral da nação. Um estado que quer ser tudo para todos, acaba sendo e fazendo nada; ou se faz alguma coisa, geralmente é malfeito.
Uma dificuldade se coloca diante dessa proposta. A maioria dos municípios brasileiros, ainda que fosse dada real autonomia, não teria autossuficiência para sobreviver sem os repasses da União. Haveria necessidade de um período de ajustamento. Provavelmente muitos municípios teriam sua condição política revertida, porque foram constituídos sem a necessária base para a autossuficiência. O mesmo ocorre com alguns estados. Assim, teríamos de fazer um trabalho gradual de preparação e somente aqueles que atingissem as condições necessárias é que efetivamente passariam a ter sua autonomia plena liberada.
Ao ser apresentada este tipo de proposta, muitas pessoas acreditam que a corrupção aumentaria. Creio que no primeiro momento isso pudesse mesmo acontecer, até que a população aprendesse a usar os mecanismos de controle sem estar na dependência de órgãos federais. Pensa-se também que os custos aumentariam. Sem dúvida, se aumentam as competências, sem aumentar o controle sobre a própria arrecadação, faltará dinheiro para todos os serviços. Por isso há necessidade de uma fase de transição. Essa mudança não pode e não deve ser realizada bruscamente.
Uma forma de evitar dispersão de recursos é a criação de padrões mínimos de desempenho baseados em indicadores sociais, educacionais, sanitários, financeiros, democráticos, ambientais, energéticos, alimentares, etc., como é utilizado na Alemanha, por exemplo. Dessa maneira, o foco estará direcionado para os resultados que se deseja atingir dando ampla liberdade para o processo e os meios a serem utilizados. Na atualidade o sistema é inteiramente engessado, porquanto o controle total das atividades dos entes subnacionais está concentrado na União.
Façamos uma minúscula digressão. Por quê um estado federal subsidiário? Por uma questão muito simples: o federalismo abomina qualquer concentração de poder. O federalismo não é e não pode ser autocrático, nem monárquico. A sua principal característica é ser poliárquico, ou seja, o poder é disperso em sua estrutura. Por isso, a subsidiariedade se apresenta como um modo de distribuir esse poder dentro de uma estrutura estatal, preservando as liberdades e capacidades individuais, assim como as autonomias dos entes federais.
Uma das maneiras de redução de custos é o compartilhamento de recursos e serviços. Digamos que numa cidade faltam vagas nas escolas, mas em outra cidade vizinha elas estão sobrando. Sem dinheiro, ou simplesmente para economizar, a prefeitura pode alugar vagas nas escolas da cidade vizinha. Atualmente a lei não permite isso, o que acaba fazendo com que os problemas não possam ser resolvidos de maneira fácil e localmente, dependendo sempre de uma extensa e lenta burocracia.
O que seria feito? As cidades contíguas poderiam se juntar e se ajudar mutuamente. Claro, isso só poderá ser feito com cidades contíguas. Digamos que dez cidades que estão com problemas de segurança, mas não é interessante que cada uma constitua uma Guarda Municipal. Elas poderiam criar uma Guarda que atendesse a todas e compartilhariam os benefícios e os custos, que seriam menores para todas. Esse arranjo, semelhante aos Condados dos Estados Unidos, seriam chamados de Comarcas.
É evidente que um estado com as características atuais está ultrapassado e gasta demasiada e ineficientemente. Manter a estrutura atual é pouquíssimo inteligente.
Estas são algumas das mudanças que deveríamos realizar para criar um estado inteligente e flexível, capaz de enfrentar as grandes instabilidades da nossa época. Essas não são as únicas mudanças que deverão ser feitas, mas são as mínimas necessárias se quisermos falar em mudança estrutural.
Na verdade, para alterar significativa e produtivamente o modelo atual do estado brasileiro, temos de mudar muita coisa e uma discussão mais profunda não caberia, neste momento. Mas uma ação é totalmente indispensável, diria até crucial: a elaboração de uma nova Constituição, com discussão e aprovação por referendo popular.
- Texto preparatório para participação como comentarista no painel sobre reformas estruturais na superlive da Federação Conservadora internacional em 02 e 03/Dez/2023. Obviamente, estas não são todas as reformas necessárias, mas apenas uma perte mais importante que deveria ser abordada dentro do tema e do tempo permitido pela organização do evento.