Por Ivomar Schuler da Costa – Vice-presidente do Instituto Federalista
O tema “subsidiariedade” vem conquistando destaque no debate político-filosófico nas últimas décadas, à medida que as grandes transformações em curso se aprofundam, afetando visceralmente a forma atual do estado-nação. As intensas mudanças na produção da riqueza influem diretamente sobre os modos de organização do poder e, conseguintemente, das sociedades. Assim como as formas pré-industriais de organização política das sociedades esvaíram-se no confronto com a revolução tecnológica, na atualidade a revolução pós-industrial, baseada na expansão do conhecimento, provoca rupturas na forma do estado-nação. É visível a existência de um crescente descompasso entre o modo de exercício do poder, iniciado com o Acordo de Westphalia, em 1648, baseado ainda em ideias do inicio da Idade Moderna, e as novas modalidades de geração e distribuição de riqueza. A consequência deste hiato, caso não seja resolvida, poderá levar a intensos e amargos conflitos tanto no nível internacional, como também no nacional.
Existem aqueles que precipitadamente advogam o fim do estado-nação e, por isso, defendem novas modalidades de organização política nos quais as nações não seriam mais estados, ou os estados não teriam como base as nações. Não podemos negar que o fim do estado-nação é uma probabilidade, mas como tudo no mundo, nem todos serão afetados, ou não serão afetados com a mesma força e da mesma forma. Pode-se até afirmar com alto grau de certeza que vários estados-nações sucumbirão a esse maremoto tecnológico e político. Os estados que não conseguiram estabelecer estruturas políticas, econômicas, sociais, tecnológicas e, sobretudo, a verdadeira soberania, serão arrastados por essa onda gigantesca. Possivelmente estes estados se desmancharão em pequenos estados que serão absorvidos por outros; ou talvez vários estados formem confederações ou federações para angariarem a força suficiente para resistir tanto às antigas quanto às novas ameaças.
É certo que a força das mudanças em curso está colocando em risco a existência dos estados atuais, todavia, passa longe a ideia de que tais forças possam realmente acabar com esta forma de organização política, embora admitamos que alguns estados possam encontrar o seu fim. Se é verdade que alguns não conquistaram a autossuficiência e ruirão, também é verdade que a maioria, caso adote as medidas necessárias, poderá enfrentar essas forças não como ameaças, mas como o seu oposto, isto é, oportunidades. O certo é que nenhum estado, por mais potente que seja, passará incólume por essa onda de transformação; no mínimo, ajustes terão de ser realizados.
A revolução eletrônico-informacional iniciada aproximadamente na metade do século passado teve como um dos seus resultados a ampliação da esfera de poder dos indivíduos, porquanto colocou em suas mãos, literalmente, um montante de conhecimento quase infinito. Ao potencializá-los, levou ao questionamento da estrutura centralizada e hierarquizada da forma antiga e atual do estado-nação, destruindo crenças antigas a respeito da melhor organização do poder. Claramente, essa não foi a única consequência, mas sem dúvida é uma das mais importantes no cenário atual de transição entre Eras. É previsível que o poder conquistado pelas massas não poderá ser barrado, nem mesmo pelas ações das “big-techs” e da tecnocracia; epidemias programadas para a depopulação também não conseguirão deter a avalanche de reivindicações de exercício mais direto do poder; a humanidade já enfrentou diversos gargalos populacionais e sempre saiu vencedora, apesar de todas as tragédias individuais e coletivas; enfim, tensões acumuladas durante séculos encontraram meios adequados para a sua manifestação, e tentar resistir à fúria delas é impossível.
Algumas questões sobressaem neste cenário são: Será realmente necessária uma substituição de estruturas políticas? Qual será a substituta da estrutura hierarquizada dos estados da atualidade? Não poderiam coexistir duas ou mais estruturas num mesmo estado?
Enquanto nos meios socialistas pretende-se supostamente que a democracia se torne cada vez mais direta, nos meios capitalistas permanece a tendência em manter a democracia indireta ou representativa. E acima de ambos sobrepairam aqueles que manipulam percepções, ideias e ideologias com a intenção de manterem indefinidamente o predomínio. Cada um dos lados pretende manter os mesmos padrões de organização social que sempre defenderam, apesar do contexto totalmente diferente que está se configurando com a marcha das transformações econômicas e políticas em âmbito mundial. A verdade é que provavelmente nenhum desses antigos padrões conseguirá se manter e, então, novas modalidades de organização social e política terão de ser adotadas. Entretanto, isso não quer dizer que ideias e exemplos do passado não possam ser utilizados, com a devida reciclagem e adaptação a cada circunstância.
Felizmente, ideias que surgiram ainda no início da Idade Moderna, e ficaram por algum tempo esquecidas, retornaram à cena no momento em que aqueles que entenderam a impossibilidade de manutenção dos modelos organizacionais antigos passaram a repensar a realidade sob outro prisma. Foi dessa percepção renovada que reemergiram, as ideias de Johannes Althusius, o precursor do federalismo contemporâneo, nas primeiras décadas do século XVII, quando expôs a noção de subsidiariedade, entre outras. No crepúsculo do Século XVIII as colônias inglesas da América do Norte conquistaram a sua liberdade e inovaram ao criarem o primeiro estado federal moderno que se tem conhecimento. Passados aproximadamente duzentos e cinquenta anos da obra intelectual seminal de Althusius, quando o comunismo marxista, totalitário, avançava, pregando e promovendo a “ditadura do proletariado” e a primazia do estado diante do indivíduo, na tentativa de impedir os abusos do liberalismo clássico, a Igreja Católica surgiu com novas ideias de organização social e política da sociedade, apresentadas na Encíclica Rerum Novarum, em 1891, pelo Papa Leão XIII. A grande inovação apresentada foi a noção de subsidiariedade, um modo de preservar o individuo dos avanços totalitários e simultaneamente preservar as funções do estado, sem incorrer em excessos de liberdade ou de autoridade; nem hierarquização excessiva, nem anarquia!
Embora a noção de subsidiariedade já estivesse presente nos escritos político-filosóficos de Thomas de Aquino, ela somente foi efetivamente colocada em prática, tentativamente, pelos protestantes calvinistas, em que pese não terem utilizado o termo. Deve-se realmente à Igreja Católica o desenvolvimento deste conceito, aplicando-o à uma situação sócio-política. Contudo, a sua evolução, a passagem de simples noção à de principio sócio-político perdurou um século, sendo concluída somente em 1981 com o Papa João Paulo II. A delimitação do conceito ficou pronta, para que o mundo possa utilizar-se dele nesses momentos de grandes incertezas, porque de grandes rupturas.
Todavia, fora da Igreja, outros estudiosos também trabalharam na questão e ampliaram o seu entendimento e possibilidades de aplicação. Para avaliar adequadamente o aumento da importância do tema seria necessário realizar um levantamento da bibliografia a respeito da questão, que certamente é expressiva. Uma das mais importantes obras sobre subsidiariedade é “l’État subsidiaire” (O Estado Subsidiário) de Chantal Millan-Del-Sol. Na última década, uma visão abrangente, filosófica, teológica e política do principio de subsidiariedade é dada no livro “Global Prespectives On Subsidiárity” (Perspectivas Globais da Subsidiariedade), publicado na Austrália e coordenado por Augusto Zimmermann e Michele Evans com a participação de autores de várias partes do mundo.
Nossa intenção neste escrito resume-se a tão somente esclarecer alguns pontos a respeito da composição semântica do termo e suas consequências práticas, na aplicação político-constitucional, político-jurídica, político-governativa, bem como fornecer elementos para a renovação do modelo sócio-político de matriz federalista.
Termos e Contextos
Uma pessoa bem informada, ainda que portadora de conhecimentos mínimos em ciências políticas ou em ciências jurídicas, ao deparar-se com o termo “subsidiariedade” perceberia que o seu significado no contexto político teria sofrido alterações semânticas e não poderia ser interpretado exclusivamente no seu sentido próprio, de ajuda, de auxílio. De fato, o sentido a ser aplicado seria o figurado, tendo em vista que outros elementos semânticos teriam sido adicionados para dar conta do contexto em que está inserido. Obviamente, o sentido próprio permaneceria como sentido nuclear, mas sozinho não conseguiria expressar toda a riqueza dos sentidos que o contexto lhe fornece e exige.
Ao ser inserido no contexto político, este termo adquire conotação mais ampla, tendo em vista que o ato da assistência, da ajuda, do auxilio se flexiona ou com outros termos de sentido semelhante ou com indicadores modais. Podemos afirmar que o termo “subsidiariedade” participa de uma pequena rede semântica, na qual o sentido original ocupa a posição central, mas que é ampliado e adaptado ao contexto, recebendo um sentido peculiar.
Aqui reside a importância de esclarecer os principais termos constituintes da subsidiariedade para que o seu sentido sócio-político possa ser bem entendido e, por via de consequência, bem aplicado.
Secundariedade e Supletividade
O primeiro aspecto a ser observado nesta noção é que ela não é o ato principal, ou seja, o ato subsidiário é sempre coadjuvante, secundário. A noção de subsidiariedade aponta para o auxilio, o reforço, a assistência de algum agente secundário a algum agente principal.
Contudo, a subsidiariedade implica também a capacidade supletiva, isto é, a capacidade de suprir, mas de modo secundário. Estas duas acepções são complementares e a subsidiariedade só adquire sentido completo, dentro do contexto político no qual está sendo colocada, quando ambos os termos atuam em conjunto. Logo, a acepção de subsidiariedade é acompanhada de duas acepções correlacionadas. A qualidade de ser coadjuvante, de ser secundária, é própria da noção de subsidiariedade; mais explicações são desnecessárias.
A segunda acepção é a de supletividade, ou seja, a de suprimento. Por sua vez, suprimento envolve o provisionamento, o fornecimento e o abastecimento. Mais uma vez, estas três acepções estão relacionadas. Há de se destacar, porém, que não são exatamente sinônimas, pois existem diferenças sutis entre elas.
O primeiro significado, por ser realmente o que antecede aos outros, é o de provisão. Este termo tem um sentido bastante abrangente (ver com antecedência, olhar para frente); pode ser o de organizar, arrumar, dispor, ordenar, regular, com a intenção de que algo se dê a partir dessa providência; ora, todas estas acepções se relacionam com a ideia de prevenção, de pensar e de atuar com antecipação para evitar ou suavizar possíveis dificuldades. Mas não é somente isso, porque prover também significa estar preparado para remediar o que deu errado, ou que ficou incompleto. Isto envolve inclusive manter reservas para as dificuldades imprevistas.
A segunda conotação do termo suplência é o de fornecimento. Uma vez previsto o que se faz necessário para que algo se dê ou evite que se dê, inicia-se a ação subsequente, que é o fornecimento. Fornecer é oferecer ou dar algo a alguém, fazendo com que este algo se torne disponível. Assim, não basta provisionar, isto é, olhar com antecedência ver o que pode acontecer dentro de determinadas condições. É necessário que aquilo que se faz necessário esteja disponível de alguma forma. De nada adianta oferecer água ao sedento no deserto se esta dista mais de dez quilômetros. É preciso que a água esteja disponível para ser consumida. Entreve-se, nesta ideia, o ato de transportar o material fornecido de um ponto a outro para proporcionar a disponibilidade. De que adianta um país ter imensas reservas de ouro em seu subsolo se não detêm a tecnologia para extrair o precioso metal? Neste caso o ouro está indisponível e o país poderá continuar na pobreza por não conseguir extrair a riqueza do seu solo.
O terceiro sentido de supletividade é o de abastecimento. Este termo difere de fornecimento porque envolve a ideia de quantidade. Se alguém pode fornecer algo a outro alguém, isso somente será bastante se estiver na quantidade pelo menos um pouco acima do suficiente para atender a certas necessidades durante tempo determinado. Abastecer tem origem em “bastar”, ou seja, fornecer com o que é “bastante”, que basta, que satisfaz. Adicional e contemporaneamente, abastecer adquiriu o sentido de colocar algo em posições e em condições que seja facilmente utilizável por alguém. Podem-se armazenar toneladas de arroz, em sacos de 60 Kg, em um depósito urbano, porém, dificilmente pessoas comuns ou desprovidas dos equipamentos adequados terão condições de acessar e carregar este produto para satisfazerem suas necessidades imediatas de alimentos; talvez nem seja necessária tal quantidade. Para isso existem os mercados, que munem os clientes com os produtos em quantidades e qualidade adequada para o consumo.
Uma análise rápida nestes termos mostra-nos que eles estão intrincados e que o sentido de um é menos ou mais amplo do que os outros, sendo que o termo “supletividade” é o mais abrangente., é aquele que envolve os demais.

Pela descrição feita dos significados de cada um dos termos componentes, ainda que tal descrição não seja completa, o termo em tela tornou-se mais claro e mais adequado para a sua utilização prática.
Subsidiariedade no Contexto Sócio-político
Desde a sua apresentação como um novo princípio sócio-político, a subsidiariedade vem sendo gradativamente estudada e aplicada. Embora não se possa afirmar que a União Europeia seja um bom exemplo de aplicação da subsidiariedade como principio político, não podemos negar que a experiência tem sido elucidativa, sobretudo nos seus aspectos negativos, ou melhor, em grande parte, mostrando-nos o que devemos evitar. A Itália também realizou tentativas de aplicação da subsidiariedade, apesar da interpretação do princípio tender geralmente para a centralização e não no seu oposto, o que é da natureza do principio. Mas, como expressa sabiamente o ditado popular, se as barbas dos europeus estão coçando, é importante que cuidemos das nossas. Assim, tratemos desde logo clarificar o verdadeiro sentido deste magnífico princípio.
Reconhece-se que o princípio de subsidiariedade caracteriza-se pela hierarquização. Sem dúvida, quando se trata de entidades estatais, a assistência, o auxílio, a ajuda, é devida e prestada por aqueles que têm maior capacidade, A prestação é do mais forte para o menos forte, do mais suficiente para o menos suficiente, do mais rico para o menos rico; enfim, é sempre do mais para o menos. No entanto, não devemos nos deixar iludir por uma superioridade aparente, pois, por exemplo, pode ser que a própria União Federal, em algum momento venha a necessitar da ajuda dos estados-membros, e estes dos seus municípios, e este ainda, dos seus munícipes. Obviamente, espera-se que tais situações não sejam comuns, mas evidentemente são situações possíveis. Assim, essa hierarquização é relativizada.
Está implícita na ideia de subsidiariedade a necessidade de intervenções dos entes superiores nos inferiores quando estes estejam temporariamente incapacitados para exercer as funções e competências que lhes cabem. Entretanto, tais intervenções não podem ser realizadas intempestivamente, sem avisos, sem preparação. No mesmo sentido, como a subsidiariedade visa preservar a liberdade dos entes menores em face dos maiores, devem ser criados mecanismos legais e políticos que possam oferecer aos menores a possibilidade de questionarem intervenções que se apresentem inadequadas. Este não é o local para explanarmos sobre estes possíveis mecanismos, mas de antemão alertamos que eles existem.
Não resta dúvida que a aplicação deste princípio em situações reais ainda está em andamento e certamente haveremos de aprender muito com isso. Todavia, a própria aplicação, para que se revista de sucesso depende da compreensão mais ampla do termo em suas vertentes semânticas. A interatuação entre a abstração do conceito e a concretude da prática fará com que os termos sejam confirmados, ajustados, ou até excluídos, quando se der o confronto de uma com a outra. De qualquer forma, apresentamos sucintamente dois termos componentes principais de um termo mais amplo com o objetivo de dar elementos para reflexões mais profundas e pedagógicas.