O federalismo pleno, modelo de estado federal específico para o Brasil, proposto por Thomas Korontai ainda nos anos noventa, tem por fundamento três grandes princípios lógicos:
1º) a dignidade da pessoa humana (princípio central);
2º) a subsidiariedade;
3º) o equilíbrio sistêmico.
Trataremos aqui somente do segundo.
Em busca de um conceito
Subsidio significa ajuda, auxílio, assistência. A origem do termo é latina, e carreia consigo a acepção de função supletiva. O termo teve origem nas legiões romanas. Elas tinham tropas secundárias que permaneciam sentadas, em descanso, e somente eram acionadas se a principal precisasse de ajuda, para reforçá-las, com o objetivo de apressar a vitória ou evitar a derrota e economizar tempo e recursos. A palavra “subsídio” indicava, uma posição inferior, pois estava “sub”, quer dizer, abaixo, sob algo; e “sidio” vem de “sido” que em latim significa algo que está assentado, parado, pousado sobre. Por exemplo, a palavra sedentário tem origem em “sido”. Assim é possível perceber a diferença entre as tropas: umas estavam em movimento, enquanto as outras estavam paradas. As subsidiárias eram aquelas que permaneciam sentadas, descansando, “sedentárias”, a espera de serem chamadas ao combate em auxílio àquelas que estavam em campo, caso fosse necessário.
A ideia de subsidiariedade começou a aparecer no mundo político somente na Era Moderna, isto é, da renascença em diante. A passagem da Era Medieval para a Moderna exigiu uma série de adaptações e modificações nos conceitos vigentes até aquele momento. O mundo medieval era hierarquizado e, portanto, a autoridade dos reis e da igreja Católica não era questionada, sendo aceito que toda autoridade era dada por Deus àqueles a quem cabia a direção da sociedade. A partir da reforma protestante, isso mudou. As novas interpretações teológicas afetaram profundamente a aceitação tácita e divina da autoridade. Acrescente-se que a noção de individualidade foi outro ponto de ruptura com o medievo, pois neste imperava a ideia de comunidade, à qual o homem estava irremediavelmente preso, enquanto a de individualidade libertava o homem daquelas regras férreas, dando mais valor ao seu pensamento, à sua expressão, ao seu livre-arbítrio e às suas ações. Essas novas noções quebraram o mundo cristão em dois e afetaram profundamente a política, na medida em que apresentaram novas fontes do poder e da autoridade, e o modo como o deveriam ser exercidos.
A passagem de uma era para outra, obviamente, não se deu sem grandes conflitos. O ser humano precisa encontrar razões lógicas, racionais, para as grandes transformações. A mente humana abomina o vazio; sempre precisamos de justificativas, ainda que em muitas oportunidades estas sejam completamente falsas ou apenas meias-verdades. A Igreja Católica, que havia dominado o mundo por mais de um milênio, em poucas décadas viu-se diante de uma nova situação na qual não detinha mais o predomínio. Como lidar com os novos reinos protestantes? Qual deveria ser a base de relação dos reinos católicos com os protestantes, dali para diante? Entre outras, essas eram questões que ocupavam as mentes tanto dos mais importantes homens da Igreja como daqueles que estavam encarregados das atividades em que essas relações se faziam cotidianamente. Diante disso, como sempre fizera, reagiu com cautela. Estava claro que as leituras de mundo que haviam sido feitas até aquele momento não serviam mais. Seria preciso interpretar aquela nova situação política. Para tarefa de tal envergadura foi convocado o gênio filosófico do jesuíta Francisco Suarez.
Pode-se afirmar, sem receio, que Suarez foi um dos precursores da democracia moderna. Ao aprofundar o pensamento escolástico, ele apresentou novos princípios que fundamentaram as ações posteriores da Igreja Católica, como o princípio de individuação. Uma das alterações que realizou no plano conceitual foi a questão da fonte da autoridade. Para o jesuíta, quem dava a autoridade aos governantes era Deus, contudo, ela era intermediada pelo povo, por meio do “consentimento popular”. Ora, o consentimento do povo para determinadas pessoas governarem é a base da democracia moderna. Lembremos também que um dos princípios democráticos é “uma pessoa, um voto”, que nada mais é do que um dos modos de expressão política da individualidade. Ao contrário do que ocorria na Era Medieval, quando as escolhas eram feitas pela comunidade, baseadas na gerontocracia e seguindo à risca as tradições, a escolha dos governantes passaria a ser feita pelos indivíduos, a partir das suas vontades.
Essas ideias consumiram algum tempo até se tornarem comuns. Os reinos católicos persistiram, sem grandes modificações, nas tradições das sociedades medievais no que tangia ao exercício da autoridade. Nos reinos protestantes, devido ao surgimento de variadas teologias, a questão da fonte e do exercício da autoridade tornara-se um problema a exigir solução; porém, o problema não se resumia aos princípios teológicos, pois questões muito práticas também chamavam a atenção dos governantes. O que estava se tornando claro é que no mundo protestante a forma de governar deveria ser diferente daquelas do medievo, de uma sociedade hierarquizada conforme a imagem que se tinha do universo. Como conciliar o plano conceitual com o plano concreto dentro daquele mundo em transformação? Este era um dos desafios dos teólogos, filósofos e governantes protestantes.
É neste período que se destaca Johannes Althusius (Althaus Johannes), nascido em 1557 em Diedenshausen na Westfália, e falecido em 1638. Estudou filosofia, direito e teologia, primeiro em Colônia, e depois em Basileia. Estudou profundamente a filosofia de Aristóteles. Em certo momento foi convidado a administrar a cidade de Endem, na Alemanha. Esta cidade destacava-se por permitir grande Tolerância religiosa.
Em 1603 publicou o livro “A política metodicamente concebida e ilustrada com exemplos sagrados e profanos”, revisado em 1610 e em 1614. As ideias expostas neste livro colocaram Althusius em um patamar tanto de precursor quanto de semeador de diversos conceitos que fundamentaram o Estado e a democracia moderna, mas principalmente o tornaram o primeiro teórico das federações e do estado federal. Embora muitos autores digam atualmente que ele formulou o federalismo, isso não corresponde à verdade. O federalismo é um conjunto de aspirações, valores, finalidades que podem se apresentar em formas muito amplas, incluindo associações, como as antigas ligas gregas, como confederações medievais como o Sacro Império Romano-germânico, como a confederação Helvética, chegando até aos atuais estados federais contemporâneos. O que Althusius fez foi uma elaboração teórica para a organização da sociedade e os limites desta com o Estado. Entre os conceitos fundantes do Estado Moderno podemos citar os de Soberania popular, baseado no consentimento popular, do povo como poder constituinte, de separação de poderes, e de República.
Para chegar à teorização de um modelo de estado federal com a originalidade que o tornou um precursor do Estado Moderno, ele buscou na Bíblia, na filosofia política aristotélica e no neo-calvinismo e numa visão antropológica diferenciada os princípios que serviram de alicerce para a sua construção teórica, mas tudo isso tendo como moldura a lei natural.
Alguns dos aspectos que tornaram a teoria de Althusius diferente das outras com as quais competia era que esta estava radicada nos conceitos centrais de simbiose social e de consenso social.
Resgatando Althusius
A recuperação de seu pensamento se deve, sobretudo, a dois aspectos, sintetizados na Política: sua filosofia do direito e seu federalismo. Apesar da moldura teológica, fundada na religião calvinista, trata-se do primeiro livro a apresentar uma teoria abrangente do federalismo republicano, enraizada no conceito de associação simbiótica e na ideia do consenso.
A importância do pensamento do teólogo alemão pode ser devidamente aquilatada quando se toma conhecimento de que os próprios pais fundadores dos Estados Unidos, este sim o primeiro estado federal da história, beberam na fonte de Althusius, ao tomarem como referencia a individualidade, a noção de estado como uma associação política, muito mais do que uma coisa.
Atualmente o pensamento de Johannes Althusius começa a ser resgatado e o verdadeiro valor das suas ideias e como elas influenciaram tanto a ordem das sociedades atuais como a forma dos estados obtém reconhecimento. Mas uma das idéias mais seminais do teórico federalista ainda vem sendo pouco estudada. Trata-se da subsidiariedade.
É verdade que o Papa Leão XIII deu um grande passo ao tratar indiretamente da subsidiariedade, embora alguns padres e pastores terem abordado este tema de uma forma um tanto quanto confusa, antes da Enciclica Rerum Novarum, publicada em 1891. Mas o desenvolvimento da ideia de subsidiariedade até ser admitida como um princípio político- administrativo do estado atingiu seu ápice com o Papa João Paulo II. Isto quer dizer que levou aproximadamente um século para desenvolver-se completamente. Ocorre que Althusius, já em 1603 começara a desenvolver a noção de subsidiariedade, aplicando-a na sua teoria do estado federal, portanto, com antecedência de mais de duzentos e cinquenta anos.
Basicamente o que o principio de subsidiariedade prescreve é que entidades mais abrangentes, ou mais fortes, mais poderosas, devem intervir nas menores, menos abrangentes e menos fortes somente quando estas se mostrem incapazes de cumprirem com as suas responsabilidades; porém, isto de modo algum significa que os mais fortes podem absorver os mais fracos, despersonalizando-os. Enquanto principio político-administrativo ele se apresenta sob dois aspectos: um passivo e outro ativo, ou um negativo e outro positivo.
O aspecto passivo é o de não-intervenção dos entes maiores nos menores enquanto não houver necessidade, de modo que estes estejam livres para o próprio desenvolvimento de modo autônomo. O positivo caracteriza-se pela intervenção somente quando estritamente necessário para que os entes menores não reduzam as capacidades já conquistadas.
Para tornar a subsidiariedade permanente
O presidente Bolsonaro fez uso do princípio de subsidiariedade ao determinar que
“sem interrupção das ações em curso e do apoio já prestado pelo Ministério da Saúde, articule as ações complementares de toda a administração pública federal em auxílio aos estados e ao Distrito Federal que o solicitarem para enfrentamento da pandemia de covid-19 em decorrência da insuficiência ou do exaurimento de suas capacidades”.
Na matéria que trata da decisão do presidente está claríssima a intenção e a ideia de subsidiariedade. Se por um lado temos, obviamente, de nos regozijar com isto, por outro temos a lamentar, pois a subsidiariedade está apenas na dimensão do governo e não na do estado, isto é, como um princípio permanente que todos os governos deveriam utilizar e respeitar. Para que se torne uma política de estado, ou melhor, da estrutura política do estado, este princípio deveria ser constitucionalizado para que não ficasse apenas como uma decisão esporádica de governos bem-intencionados.
É por este motivo que o Instituto Federalista trabalha no projeto de uma nova constituição que tenha condições de estabelecer um verdadeiro estado federal no Brasil, um Estado Federal Pleno, ou seja, um estado federal erigido sob o princípio de subsidiariedade.
Ivomar Schuler da Costa – vice-presidente do Instituto federalista