Um importante documento
Apesar de o dia 19 de julho já ter ficado para trás, a inspiração do seu significado nos motivou a produzir o documento adiante publicado, para registrar, além da esquecida efeméride, o que a Caridade tem a ver com o localismo e a ação individual, um dos aspectos do federalismo plenamente aplicado.
Importante frisar que a caridade não pode ser praticada pelo Estado, pois seria uma contradição. O máximo que o Estado pode fazer é assistência social, emergencial, o que se faz necessário em determinadas circunstâncias, e permanente (ou quase isso), o que demonstra falência das políticas públicas e da organização do Estado, ou ainda, a predisposição clientelista, na forma de assistencialismo, próxima do totalitarismo, para manter o máximo possível de pessoas sob sua tutela, o que é desprezível.
Um documento que faz ligações de conceitos e fatos históricos para a compreensão de um valor tão importante para a convivência em sociedade, quanto para a dignidade do indivíduo. A proposta da criação e publicação dete texto é trazer de volta para o centro da vida, tal valor humano. Concepção, pesquisa e elaboração do Documento é de Ivomar Schuler da Costa – Vice-Presidente do Instituto federalista.
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Dezenove de julho comemora-se o Dia Nacional da Caridade, data instituída pelo Presidente da República Humberto de Alencar Castelo Branco em quatro de julho de 1966 por meio da Lei 5.063.
A intenção do Presidente Castelo Branco era reforçar a solidariedade e o bom entendimento entre os brasileiros em um momento de grave crise social e política. Forças obscuras atuavam sobre o Brasil na vã tentativa de produzir uma cisão social que, de algum modo, facilitasse a sua derrocada e, consequentemente, o domínio sobre o seu povo e sobre as suas riquezas.
A caridade tem mais poder do que a força ou a política.
Foi admirável a inteligência do Presidente Castelo Branco ao instituir tal data, pois denotou a sua visão de que somente soluções de força ou soluções políticas não contribuiriam determinantemente para debelar o problema que se apresentava ao país naquele momento. Mais do que isso, é possível perceber nas entrelinhas o seu reconhecimento da necessidade de atuação de cada brasileiro, no sentido de despertar o sentimento profundo de amor que dormita em cada um de nós; seria preciso ir além das ações de superfície. Somente esta potência, o Amor, é que poderia evitar tanto a geração quanto o alargamento das lacunas existentes naquele período da Sociedade Brasileira. Apesar da situação extraordinária em que as circunstâncias históricas o colocaram, ao instituir tal data o Presidente reconheceu o povo como a fonte emanadora do poder político e logo tratou de criar algumas condições para reforçar os laços morais entre os brasileiros de todos os rincões, de todas as etnias, de todas as cores, de todas as camadas sociais. Todas as instituições humanas são transitórias, mas, somente o Amor é permanente, porque é constituinte do ser humano.
Queremos destacar aqui a importância da criação do Dia Nacional da Caridade, sobretudo porque o Brasil é um país de população predominantemente Cristã. Sabemos que todas as religiões possuem códigos morais, porém, foi o Cristianismo a única a colocar o Amor como centro do seu código; Amor que é o Bem em potencial, presente em cada ser humano, cuja manifestação recebeu o nome de Caridade. Assim, podemos dizer que o Amor é o Bem latente em nós, enquanto a Caridade é o Bem patente.
Sem desprezarmos qualquer religião digna deste nome, foi o cristianismo que expandiu a caridade e a tornou uma aspiração de muitas pessoas, bem como um modo de vida para muitas outras. O preceito da caridade, desde o início, foi colocado como um sinal de identidade entre os seguidores do Cristo, quando ele afirmou que os seus discípulos seriam conhecidos por muito se amarem. Obviamente manifestações de amor ao próximo sempre existiram, contudo, o amor e a caridade como preceitos fundamentais de um código moral é uma obra eminentemente cristã. Por exemplo, ideias e práticas precursoras da caridade, conhecidas como “Tzedaká”, existiam anteriormente no judaísmo, as quais serviram de substrato cultural para ampliação das ideias e práticas caritativas nos séculos posteriores a Jesus.
Igualmente, pessoas de várias partes do mundo em épocas diferentes, pregaram e realizaram atos heroicos em prol do Bem, todavia, somente Jesus pregou e realizou integralmente a Caridade, de modo que Ele é o nosso exemplo supremo e insuperável.
A Caridade é uma virtude sintética
Atualmente o termo Caridade caiu em desuso a ponto de não se reconhecer mais a que ele se refere, isto é, qual é o seu sentido. A veracidade desta afirmação pode ser facilmente verificada no fato de ainda que exista uma lei instituindo um dia para comemorá-la, esta data passa ao largo, enquanto outras datas de menor importância e de menor impacto moral, são amplamente divulgadas pelos meios de comunicação. É desejável que este cenário seja invertido e que, portanto, no mundo contemporâneo, a rainha das virtudes passe a ser relembrada, mas, principalmente, praticada.
Em vista disso, dessa necessidade de reavivar estas questões de máxima importância para a Sociedade, é que apresentaremos alguns elementos essenciais desta virtude, entretanto, sem adentrarmos em questões teológicas ou desejarmos contraditar os entendimentos, dogmas e preceitos de qualquer religião ou igreja sobre este tema, mas sim, com o interesse de apresentar uma noção básica que sirva de orientação para quem se interesse pelo problema e pela busca de soluções.
Entendemos a Caridade como uma virtude sintética, ou seja, uma virtude composta de outras virtudes. Embora cada uma delas isoladamente seja importante, somente quando atuando em conjunto, em ação sinérgica, é que emerge a Caridade, logo, elas são virtudes basilares.
O pilar central da caridade é o desinteresse pessoal, que significa fazer o Bem sem buscar qualquer resultado, recompensa ou vantagem pessoal; é fazer o Bem pela simples vontade de fazê-lo. A prática de atos benéficos somente pode ser considerada Caridade quando não se almeja ou não se receba qualquer retribuição. A importância desta é decorrência da sua centralidade no conjunto que forma a Caridade, pois ela irradia-se para todas as outras que a circundam. Pode-se afirmar que sem ela não há a verdadeira Caridade.
Para tornar mais fácil o entendimento da sua importância, podemos compará-la a um comboio ferroviário. Neste caso o desinteresse pessoal seriam os trilhos. O comboio somente é útil enquanto está sobre os trilhos, fora deles não serve mais para realizar a sua função principal, tornando-se, portanto, inútil.
O Bem para ser praticado depende da vontade. Não se trata de qualquer vontade, mas sim de uma vontade de produzir um bem; deve ser uma vontade boa, ou uma boa-vontade. A esta vontade dá-se o nome de benevolência. Usando ainda a metáfora ferroviária, a benevolência é a locomotiva que puxa os vagões da Caridade sobre os trilhos do desinteresse pessoal. Sem a locomotiva os vagões não se movimentam; sem a benevolência, ou seja, sem a vontade de realizar o bem, as outras virtudes componentes da Caridade estão sem direção e sem força para se movimentar.
A composição da caridade é completada por mais três virtudes: a abnegação, a indulgência e o devotamento.
A abnegação é a virtude que consiste em colocar o bem do outro em primeiro lugar, acima até do nosso próprio bem-estar pessoal. Isso não significa que jamais devemos buscar o nosso próprio bem, mas sim, que colocamos o bem do outro em primazia.
A indulgência é a virtude que implica a tolerância e o perdão das ofensas que dirijam contra nós ou contra aqueles a quem queremos bem. A indulgência tem como pré-condição uma compreensão ampla do mundo e do ser humano, das misérias e fraquezas, bem como das suas forças de ascensão espiritual.
Uma das suas decorrências é a tolerância, que é a capacidade de lidar com as diferenças e com os diferentes, sem recorrer à violência, na tentativa de adequá-los ao nosso modo de ser, de conhecer e de viver. Deus não é um industrial, pois não nos cria em um regime de produção em série, tornando-nos idênticos uns aos outros, sem quaisquer diferenças; ao contrário, ele nos dota de diversas potencialidades de diferenciação individual, embora a presença de elementos comuns a todos nós, por exemplo, o Amor; por conseguinte, a tolerância é uma necessidade para a boa convivência e coexistência pacífica e ordenada.
De forma alguma a tolerância se confunde com a conivência. Tolerar é entender que os outros têm o direito de serem, de pensarem, de sentirem e de crerem diferentemente de nós, sem que os obriguemos a viver segundo nossas concepções ou a concordar conosco, usando meios impositivos para atingir essa homogeneidade. Para que haja tolerância é necessário reconhecimento da existência de padrões e distinções fundamentais entre o bem e o mal. Onde tudo é relativo, o mal é tido por bem e o bem por mal, logo, a tolerância é desnecessária por se tornar inútil. Uma vez que se reconheça a existência, a tolerância passa a ser importante para a convivência pacífica entre os diferentes; no entanto, ela tem limites. Ninguém nega que o afeto da mãe pelo filho é exponencial, mas este afeto, quando excessivo, pode ser prejudicial ao filho. Nenhum cristão autêntico nega o direito à vida e a existência de quem quer que seja, assim como ao exercício de direitos políticos e civis aos profitentes de outras religiões, mas quando estes usam as leis benignas de um país de cultura predominantemente cristã para destruir o próprio país que os acolhe, e os cristãos não se levantam contra tais atos, não os condenando, então há aí, conivência. Nenhum cristão autêntico procura interferir na vida privada dos outros, sobretudo na sua vida sexual, porém, quando estes outros buscam subverter os padrões de moralidade cristã de uma sociedade, promovendo comportamentos e hábitos dissonantes, alguns de extrema bizarrice, usando para isso a liberdade que lhes é facultada, e os cristãos não se opõem pacificamente a estes comportamentos, então, estão praticando a conivência com o mal. Basicamente a conivência implica o consentimento à prática do mal, consentimento que se dá quando não nos opomos a práticas que podem destruir até a tolerância que os permite existir. Assim, cometendo certa impropriedade, podemos dizer que conivir é ser tolerante com o mal.
Completando o quadro da indulgência, temos o perdão, que significa que não guardamos ressentimentos contra aqueles que intencionalmente nos prejudicam, ou nos prejudicaram. O que caracteriza o perdão é a incondicionalidade. Perdoar é diluir os ressentimentos que agasalhamos contra os que nos ofenderam de algum modo, mas sem colocar qualquer condição ao ofensor para conceder o “esquecimento” do mal por ele praticado. Neste contexto, ofensa inclui qualquer ato que tenha nos causado algum mal. É preciso esclarecer, no entanto, que perdoar jamais terá a conotação de deixar impunes aqueles que praticam o mal. Aliás, este é um modo equivocado de entender o perdão e que tem causado muitos problemas na sociedade atual. A linha de distinção se localiza no exato ponto em que a afetividade e a necessidade da educação se tangenciam. O pai que perdoa o assassino do seu filho busca retirar do seu coração os espinhos que lhe causam dor, mas nem por isso deve deixar de buscar a educação do criminoso pela aplicação da lei. O perdão concedido pelo pai significa que ele não quer vingar-se do mal que lhe causaram, praticando outro mal contra o transgressor da lei de respeito à vida. Além disso, a punição aplicada pelos órgãos judiciais do país, e não pelas próprias mãos do pai que teve ceifada a vida do filho, é uma forma de prevenção, pois o criminoso preso é impedido de cometer outros crimes. Quando Jesus nos diz ide e reconciliai-vos com o adversário, está nos ensinando a pacificar nossas relações, mas em parte alguma do seu evangelho nos recomendou cooperar com os adversários que tenham cometidos crimes. Naturalmente, referimo-nos a essa punição legal supondo que os sistemas penais do país possam realmente recuperar aquelas pessoas que tem condições para tanto. Neste caso, a punição deve promover a reeducação do transgressor para bem próprio e da Sociedade. A indulgência não inclui a leviandade.
Por derradeira temos a virtude do devotamento, que nada mais é do que a dedicação constante ao Bem. O termo devotamento tem origem na palavra voto, que significa dedicação ou dedicar. Mas o que caracteriza o devotamento como virtude moral é a constância. Um Bem que se pratique esporadicamente, sem dúvida continua sendo Bem, mas para que este Bem se constitua em caridade deve ser praticado repetidamente. Assim percebe-se que o devotamento exige um esforço enorme para consolidar-se, e isso envolve a vontade.
Após essa breve explicação das virtudes componentes da caridade, queremos expor mais alguns fatores importantes para entendê-la em um quadro mais amplo.
Em primeiro lugar, um Bem que se pratique dentro das condições que expusemos, mas que tenha sido obrigado por outrem, isto é, sem a participação da livre escolha do praticante, não é caridade, ainda que se revista da aparência desta. Portanto, sem liberdade moral, ou política e civil, é impossível a prática da caridade.
Em segundo lugar, como dissemos, a caridade é o Bem patente, é o amor em ação, é o amor atuante, contudo esse Bem não deve fazer acepção, distinção, separação, segregação de pessoas; por exemplo, um Bem que é feito somente a um grupo de pessoas com exclusão de outras, por motivos raciais, ou políticos, ou sociais, quando se tem condições de estendê-lo a todos, não é Caridade. Sem dúvida, o bem feito aos componentes do grupo é ainda um Bem. Um amor exclusivo, um bem parcial, ou seja, uma caridade restrita é autêntica contradição de termos. A prática do Bem é Caridade somente se é incondicional.
Em terceiro lugar, se a caridade é uma exigência moral ela só o é na medida das nossas capacidades, afinal ninguém dá o que não possui. Assim a prática da caridade será sempre limitada pelas nossas competências, capacidades, habilidades e aptidões individuais e coletivas. Disso decorrem duas questões: a primeira é que devemos ter sempre em mente que existem problemas mundiais como a fome, os quais, gostaríamos de resolver, mas, individualmente somos limitados na capacidade de resolução: a responsabilidade é comum a todos, mas diferenciada em suas aplicações. Assim, embora sejam problemas preocupantes, devemos nos limitar à resolução dos problemas mais próximos de nós que, na maioria das vezes, dependem exclusivamente de ações muito simples. Como cristãos devemos lembrar o ensinamento de Jesus aos apóstolos ao declarar que a pequena moeda quase sem valor econômico, um óbolo, doado por uma viúva, ou seja, uma mulher desamparada, tinha mais valor do que a quantidade muito maior de moedas que outros mais afortunados haviam doado. Com essa inesquecível lição, Jesus também realçou a importância das pequenas obras, dos pequenos atos, das ações benéficas minúsculas que todos nós podemos realizar, porquanto, milhões de pessoas praticando diária e continuamente pequenas ações caritativas têm um potencial de produção do Bem muito maior do que a fortuna de um bilionário, que doa para promover exclusivamente os seus interesses pessoais. A segunda é que se a caridade é limitada pelas nossas capacidades, um dos mais importantes bens que fazemos a nós mesmos e aos outros é a ampliação delas. Em suma, para praticar a caridade não nos é exigido o impossível, contudo, dizer que algo é impossível é apenas uma questão de perspectiva e de tempo para encontrar o meio de superar as condições impeditivas para a sua realização. Se podemos pensar no Bem, logo, ele não é verdadeiramente impossível.
Já sabemos algumas coisas sobre a caridade. Conhecemos as virtudes que a compõem, suas características, propriedades e condições; interessante conhecer, então, as origens do termo.
Origens da palavra “caridade”
A etimologia nos aponta as duas origens, sendo uma grega e outra romana. A origem grega está em “Charis” (Lê-se Karis) e tem o sentido de um dom, de algo que é dado graciosamente, gratuitamente. Deste termo derivam as palavras graça e doação. Outra palavra muito em voga, por exemplo, é carisma, que também é uma palavra derivada de “charis”. Daquelas pessoas dotadas de certas características extraordinárias de atração da atenção alheia, que lhe proporcionam fama e carinho público, é dito que possuem carisma, como um dom, uma graça que lhes foi concedida, já que a posse dessa característica é incomum. A origem Romana está na palavra “carus”, que tem a conotação de algo valoroso. Quando aplicamos o adjetivo caro ou caríssimo aos nossos amigos, estamos exprimindo um sentimento de que eles têm um valor diferenciado expressivo para nós. Deste modo, o termo caridade expressa tanto uma doação como o reconhecimento do valor do outro, valor que é também conhecido como dignidade. É claro que o cristianismo alterou os sentidos originais destes termos, ampliando-os.
Ao estabelecer a filiação Divina de todos os seres humanos, estendeu a dignidade que era reconhecida somente para alguns; todos sem exceção passam a ser reconhecidos como portadores de certo valor intrínseco, independentemente das condições econômicas, sociais, políticas, de origem, de nacionalidade, de perfeição ou de deficiência física ou moral. Enfim, o valor, a dignidade, é um bem presente em todo e qualquer ser humano. Consequentemente, todo ser humano deve ser respeitado independentemente das suas condições externas devido a presença intrínseca deste valor e o bem de cada um deve ser promovido por todos os outros.
Enquanto doação, podemos distinguir duas espécies de Caridade: doação de coisas e a autodoação. Quando entregamos, sem esperar retribuições, alimentos aos necessitados, e o fazemos de modo constante pelo simples interesse de fazer o Bem pelo Bem, praticamos a caridade por doação; é, digamos assim, uma manifestação externa da caridade. Muitas vezes não dispomos de coisas para doar restando somente nossas disposições interiores, a paciência, a compreensão, o perdão, a tolerância, a gentileza, entre muitas outras, e até mesmo, sempre que as condições permitirem, a reprimenda gentil aos equivocados, desrespeitosos, corruptos e criminosos, mas quando não o permitirem, a corrigenda enérgica, mas dignamente humana, deve ser utilizada. utras situações, o outro dispõe de todas as coisas materiais para a sua sobrevivência, mas sua alma encontra-se atribulada e necessitada de atenção. Nesta situação a caridade se manifesta como as diversas atitudes citadas. A resistência pacífica às agressões dirigidas a nós, como a calúnia, a difamação, a injúria, a espoliação econômica, incluem-se neste rol de atitudes e comportamentos que expressam o amor, que nos constitui, na forma de autodoação.
Completamos, então, essa descrição básica da Caridade, cujo objetivo é fundamentar melhor um tema que sofreu os efeitos da espiral do silêncio, e fez com que a nossa sociedade, um manancial quase inesgotável de afetividade, relegasse ao abandono o mais sólido fundamento da civilização cristã e ocidental.
Ao compararmos a descrição das virtudes componentes da Caridade, verificamos que atualmente há uma gigantesca campanha para extingui-las da alma dos brasileiros. Assim, é preciso trabalhar para evitar essa tragédia, que nos transformaria de um país que ainda pode ser considerado um recanto do mundo com potencial para a paz, em um palco de guerras fratricidas. Contudo, a questão que se coloca é o que fazer para reavivar estas virtudes de tal forma que influa sobre a sociedade e modifique os rumos do totalitarismo que avança sobre nossas vidas? Não nos resta nenhuma dúvida que precisamos olhar para o passado e aprender com os atos heróicos dos que nos precederam e enfrentaram os dragões do mal, vencendo-os e mantendo o mundo em segurança.
Um turbilhão de crises
Hoje o Brasil se encontra mais uma vez envolvido não somente em uma crise, mas em um atormentador turbilhão de crises. Diferentemente da década de sessenta, agora as crises são mundiais, com fortes repercussões locais. Os efeitos são também um pouco semelhantes aos daquela época. Há uma forte polarização política, cujo evidente objetivo é gerar uma clivagem social que ofereça a oportunidade de forças internacionais quebrarem a nossa soberania e submeterem nosso povo. Se naquela época havia brasileiros atuando em conjunto com forças externas obscuras, a quantidade deles era reduzidíssima, porquanto, a maioria do povo permanecia fiel à sua pátria bendita; no momento atual, porém, o problema avulta devido a quantidade de brasileiros que aderiram a projetos de destruição do País. A quantidade é realmente maior, mas ainda é percentualmente menor do que aqueles que não aderiram a estes projetos. É verdade que a maioria dessas pessoas acredita estar realizando uma tarefa benigna, tendo em vista a inconsciência das terríveis consequências que seus atos podem acarretar. Quase todos foram submetidos a processos de de-sensibilização patriótica e repulsa aos seus conterrâneos. O Estado foi lentamente sendo ocupado por agentes internos de interesses externos, ideologicamente guiados.
Para atingir esta situação trataram primeiramente de dominar as instituições educacionais de todos os níveis, subvertendo os processos educativos que garantiam efetivo desenvolvimento das faculdades intelectivas, volitivas e afetivas dos alunos. A intenção clara foi produzir um contingente enorme de pessoas alienadas no que tange aos próprios interesses e aos da Nação. As ações dessas forças obscuras, auxiliadas por agentes internos, foram e continuam sendo muito mais abrangentes do que imaginamos. Posteriormente, com a gradativa tomada do Estado, foram sendo ampliadas cada vez mais vagas no Serviço Público, quando, misturados àqueles que labutavam para conquistar um salário melhor, eram introduzidos muitos agentes das ideologias contrárias aos interesses brasileiros. Assim, de cargo em cargo, no poder Legislativo, no Executivo e no Judiciário, vários desses agentes galgaram posições que lhes permitia mudar a ordem das instituições nacionais. Mas essa guerra surda contra a Nação contou também com a participação de entidades civis privadas encarregadas da comunicação social. Não há quem desconheça atualmente o poder da comunicação e dos seus meios. O poder de influir sobre a população foi e está sendo amplamente utilizado para, por um lado, esconder certas coisas, desviando a atenção acerca das importantes questões da vida, e por outro, estimular as atitudes e comportamentos moralmente dissolutos.
O momento é de grave e profunda crise civilizacional. Dificilmente uma civilização é destruída por ataques inimigos externos; o que geralmente acontece é ser destruída pelo relaxamento dos padrões internos de coesão, harmonia e solidariedade social e moral. Quando estes padrões atingem certo ponto ocorre uma ruptura que torna difícil retornar ao ponto anterior e começa a acontecer o enfraquecimento da civilização, tornando-a presa fácil dos seus inimigos. Foi o caso do império romano.
Olhando para as experiências transatas observamos que a estrutura do Império Romano, que era baseada na violência e na espoliação de outros povos, começou a ruir no tempo de Jesus, mas, ainda assim, durou mais quatrocentos e cinquenta anos. Os cristãos foram perseguidos por aproximadamente três séculos, apesar disso no final, foram os vencedores, pois lograram transmutar uma ordem violenta por outra pacífica.
Caridade: o pilar esquecido da civilização ocidental
Quanto mais os cristãos eram perseguidos e mortos, mais atraiam a atenção das pessoas de todas as camadas sociais, conquistando-os para os seus ideais, de modo que a população de cristãos aumentasse continuamente. Contudo, não foi exclusivamente a resistência pacífica que atraia mais seguidores, pois paralelamente havia também uma poderosa mensagem de reconhecimento da dignidade, não somente dos bem colocados na pirâmide social, mas sim todas as pessoas, sem qualquer exceção. Este reconhecimento, aliado ao mandamento moral de “amar ao próximo, como a si mesmo (ama)”, levava naturalmente os cristãos à prática da Caridade, em suas múltiplas manifestações. Aos miseráveis e pobres era dado o alimento e o abrigo, aos que dele não necessitavam era ofertada a compreensão, a fé, a esperança e a oportunidade de contribuir com a melhoria do mundo por intermédio das ações beneficentes aos que sofriam.
Nas primeiras décadas do Cristianismo, os cristãos não se alistavam nas forças militares do Império, ao contrário, muitos legionários abandonavam as tropas quando aceitavam o Evangelho de Jesus. Isso gerou alguns problemas para as legiões que mantinham o poder de Roma e, por decorrência, era motivo de perseguição aos cristãos. Este assunto empolgou os primeiros apologistas e pensadores do Cristianismo que debateram e concluíram que os cristãos poderiam integrar as fileiras das tropas romanas. Apesar dessa concessão, em períodos de perseguição, os soldados cristãos eram mortos sem piedade. A resistência desses soldados para não traírem as suas consciências diante do poder do Estado é um exemplo que devemos refletir com atenção redobrada nos dias atuais.
Tornou-se memorável a resistência do Maurício, um centurião da Legião Tebana. Esta legião fora recrutada completamente na cidade de Tebas, no alto Egito, e era formada inteiramente de cristãos. Durante a insurreição da Gália, por volta do ano 286, o imperador Maximiano avançou sobre aquela região, e a Tebana era parte do seu exército. Depois de haver suprimido a revolta, no seu retorno o imperador ordenou que todo o exército sacrificasse aos deuses romanos, agradecendo pelo sucesso na campanha. Como a maldade imperava, ele também ordenou que prisioneiros cristãos fossem executados. A Legião Tebana inteira desobedeceu à ordem e retirou-se para um lugar bastante afastado para não participar nem dos rituais, nem do morticínio de cristãos, e assim não serem infiéis a Jesus. Maximiano ordenou várias vezes que a Tebana obedecesse a sua vontade, mas como os legionários cristãos recusassem com firmeza, ele ordenou uma “dizimação”. A cada dez homens um era morto. Como os soldados cristãos continuassem com a mesma fibra que mostraram em combate, ele ordenou uma segunda dizimação. Porém, o centurião Maurício lhes reforçou a fé e nenhum dos seus soldados fraquejou. Todos foram decapitados sem resistência por outros legionários, inclusive o próprio Maurício. Este é um exemplo de como a coragem dos cristãos tem poder para derrotar qualquer forma de totalitarismo. Posteriormente ele foi canonizado e tornou-se um dos santos mais populares da Europa ocidental, sendo considerado protetor de várias dinastias europeias. No Brasil, é considerado o padroeiro das Escolas Militares, da União Católica dos Militares e também o guia espiritual da Cruzada dos Militares Espíritas.
Se durante séculos as terras do império romano foram fertilizadas com o sangue dos mártires, não é menos verdade que também o foram com a caridade de cada cristão que permaneceu vivo, dedicando sua vida ao Bem de todos. Por fim, a Caridade venceu a maldade, a pacificidade venceu a violência, a coragem venceu o medo, a abnegação venceu o egoísmo, a indulgência venceu a vingança, o diálogo venceu a força, o devotamento ao bem do próximo venceu a dureza dos corações. De modo semelhante à ação persistente da água que burila as arestas afiadas das pedras até que se tornem seixos, a Caridade pode reduzir a pó qualquer expressão de maldade.
Após a queda do império, sem uma entidade que possibilitasse a organização e existência ordenada de uma sociedade, a Igreja Católica assumiu esta função e entre muitas dificuldades, alguns erros e muitos acertos, gradativamente conseguiu amenizar costumes bárbaros, suavizar a aplicação da justiça, organizar a produção, criar entidades de auxílio aos doentes, escolas e universidades; hábitos sociais foram retificados, as famílias foram estabilizadas e institucionalizadas para todos, a arte e a educação foram valorizadas e expandidas.
Neste aspecto, o poder, em certa extensão, foi organizado para que a política se sobrepusesse à guerra e ao arbítrio, beneficiando toda a sociedade. No conjunto, todas estas instituições morais, econômicas, sociais e políticas formaram as bases daquilo que hoje conhecemos como civilização ocidental, na qual o Brasil está inserido. Todavia, a maior obra do Cristianismo foi a educação do ser humano para o exercício do Amor.
A partir do século dezesseis, o mundo cristão se divide em duas partes. Forma-se uma corrente que passa a ser conhecida como “protestante”, a qual separa-se da Igreja Católica e forma outra igreja. Embora não seguisse os cânones católicos, os protestantes, com um entendimento acerca do exercício do Amor, mas visando o Bem das pessoas e das sociedades onde está presente, e com um animo diferente, manifesta esse Amor sob múltiplas formas, inclusive na geração de tecnologias que contribuem para diminuir os sofrimentos humanos, criando máquinas que ajudam a diminuir a fome, a debelar a doença. Eles também não esqueceram do mundo cultural, e implantaram suas universidades para expandir o pensamento humano.
No século dezenove surgem outras correntes de pensamento e atuação cristã que não seguem a linha tradicional, mas nem por isso deixam de manifestar o Amor do qual, todos somos dotados pela divindade.
A crise atual, e que se acelera velozmente, é causada pelos ataques sub-reptícios aos fundamentos da civilização cristã ocidental. São ataques destrutivos que estão sendo realizados há mais de um século. Embora não esteja claro para a maioria de nós, o esfriamento da caridade, do exercício do Amor, é um alvo dos interessados na implosão do mundo cristão. Uma vez congelado o Amor, o Estado pode tornar-se amplamente totalitário sem a resistência dos cristãos, e dominar completamente as sociedades.
As leis dos países têm sido subvertidas dentro deste programa diabólico. Leis injustas, ilegítimas, draconianas têm sido aprovadas para reduzir ao mínimo possível a crença das pessoas numa ordem social mais equilibrada. Um dos instrumentos foi o desligamento das leis positivadas do jus-naturalismo, de forma que a lei válida tornou-se somente aquela que é aprovada por parlamentos eleitos, e a maioria destes parlamentos tem sido eleita por sistemas fraudulentos, ilegítimos e ilegais, portanto. Ao deixar de acreditar na justeza da lei, o cidadão torna-se frio e interessado somente nos seus problemas pessoais, desligando-se da busca do bem-comum, destruindo, conseguintemente, os laços de solidariedade social.
O Brasil, como não poderia deixar de acontecer, sofre praticamente todas as consequências dessa estratégia demoníaca, mormente por ser, em que pese seus imensos problemas econômicos, sociais e políticos, uma nação onde a Caridade viceja com a mesma fertilidade com que crescem os produtos vegetais alimentares. No atual angustiante período histórico é natural que nos sintamos desesperançados, que pensemos que nossos problemas jamais serão resolvidos, que somos inferiores a outros povos mais adiantados tecnologicamente, mas se olharmos com atenção perceberemos que nosso povo é rico de afetividade, de sentimentos expansivos, quando em outras nações consideradas avançadas sob diversos aspectos, qualquer desagrado é motivo para a explosão de revoltas populares e guerras fratricidas, onde as relações afetivas são “tão quentes quanto pedras de gelo”. A afabilidade dos brasileiros é proverbial, tanto que os estrangeiros de diversas procedências, nacionalidades, culturas e religiões que aqui aportam, ao receberem o nosso acolhimento e serem tratados com informalidade amena, se declaram encantados. Para nós, brasileiros, é relativamente fácil praticar o Bem. Mesmo pessoas nascidas em nações milenarmente inimigas quando vem para o Brasil tem suas arraigadas rivalidades dirimidas ao se envolverem em nosso ambiente cultural. É nisso que reside a nossa maior força para resistir à gigantesca onda de materialismo de doutrinas dissolventes. Tudo isso como que nos aponta o caminho a seguir.
É claro que devemos resistir a esta tentativa de divisão política e desorganização social que está sendo promovida com todos os instrumentos e meios que estiverem ao nosso alcance. Devemos, porém, labutar com segurança, começando por buscar as raízes mais profundas da psicologia do povo brasileiro, que são raízes cristãs. E no centro destas está a Caridade. Quanto mais nossos inimigos externos e internos nos agredirem, maior deverá nosso esforço para expandir a Caridade. Ela foi o principal tijolo de edificação da civilização ocidental. Agora, quando esta civilização encontra-se em crise porque relegou ao abandono a sua base de sustentação, e por isso cambaleia e agoniza, para evitar a sua morte temos o dever de aplicar no Brasil o medicamento que o Sublime Médico das Almas nos ensinou, o imbatível amor, manifesto na Caridade, o Amor operante.
A Caridade e a Liberdade
A Caridade pode se manifestar em qualquer ambiente, mas naqueles de maior liberdade humana ela flui melhor e produz melhores frutos. Ela pode vencer o autoritarismo e o totalitarismo dos Estados. Por isso é tão importante labutarmos com intensidade pela autonomia dos indivíduos e da sociedade. Uma sociedade livre, autônoma, a torna protagonista da própria história. Quando esta sociedade cuida e trabalha diretamente para que todos os seus componentes sejam atendidos em suas necessidades básicas, para que ninguém viva abaixo do limite da dignidade humana, o totalitarismo não encontra brechas no Estado para ocupar espaços e retirar da população a capacidade de cuidar de si mesma. Quando o Estado pretende cuidar de todos, fazendo tudo para todos, o que na realidade promove é a destruição do tecido social, pois todos se tornam simples seguidores de regras impostas de cima e o seu Amor esfria. O mundo torna-se cinza. Com o amor ele expressa toda a imensidade de cores que alegram a vida. A Sociedade, neste momento difícil, deve resgatar seus valores cristãos e trabalhar pelo bem de todos, sem intermediários. O Estado é importante e necessário, mas sem uma sociedade autônoma, livre e atuante no Bem, ele se torna apenas uma máquina fria e insensível que devora a individualidade, ao passo que a Caridade, na dimensão afetiva da Sociedade, promove o desenvolvimento dos seus componentes como seres humanos. Portanto, a Caridade é um dos melhores antídotos contra o totalitarismo.
Nossa tarefa é ampla e exige grande dedicação. Podemos iniciá-la conclamando a todos os de boa-vontade a se juntarem a nós para trabalharmos pelo bem-comum, e para comemorar o Dia Nacional da Caridade, revivescendo na mente popular esta data tão importante em um País que se considera e ainda é cristão, e onde o Evangelho de Cristo tem amplo campo para manifestar-se. Aproveitamos o ensejo para homenagear este grande homem público que foi o Presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, cuja iniciativa de instituir a referida data mostrou sua capacidade de autêntico estadista e cristão.
Dezenove de julho, Dia Nacional da Caridade, não esqueça mais esta data.
Saudações a todos os brasileiros de boa-vontade!
Instituto Federalista
Thomas Korontai
Presidente
Julho/2021