Por Ivomar Schuler da Costa – vice-presidente o Instituto Federalista
Nas últimas três décadas pelo menos, a Amazônia brasileira tornou-se uma região altamente sensível sob diversos aspectos, sobretudo no geopolítico. Existe o risco de o Brasil perder a soberania sobre aquela imensa e riquíssima área. Há dois anos o presidente francês, Emanuel Macron, por diversas vezes declarou que a Amazônia pertence à humanidade e não ao Brasil. Neste mesmo período tomou corpo uma forte e ampla campanha de desinformação da opinião publica mundial no sentido de atribuir ao Brasil a incapacidade de gerir este espaço verde que é apresentado como o “pulmão do mundo”, quando hoje se sabe que não o é. Nos últimos meses, forças militares internacionais, como a OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte – por intermédio dos seus principais comandantes, têm vindo a público declarar que a região amazônica, cuja maior parte pertence a nós, brasileiros, é imprescindível para a sobrevivência da humanidade, e caso não cuidemos bem deste patrimônio não estaria descartada uma invasão militar para evitar que nossa suposta irresponsabilidade destrua o planeta. O primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, a poucos meses declarou que caso se torne necessário, ele enviaria as tropas inglesas para invadir outros países e proteger a floresta contra o desmatamento. Ao mesmo tempo, Agropecuaristas estadunidenses fazem lobby e campanhas midiáticas para a preservação da Amazônia, inclusive financiando ONGs estrangeiras e até brasileiras para defenderem os seus interesses. A verdadeira intenção dos fazendeiros norte-americanos é o medo da nossa gigantesca capacidade e eficiência na produção de alimentos, que poderia levá-los à falência caso usássemos toda a extensão das nossas áreas férteis. Não somente isso, pois atualmente sabemos que além da exponencial capacidade de produção de alimentos, a Amazônia contém igualmente aquíferos imensos, capazes de abastecer o mundo de água potável por dois mil anos à taxa atual de consumo, bem como reservas petrolíferas que caso sejam bem exploradas podem nos tornar energeticamente independentes. É claro que em um mundo onde o poder militar depende de petróleo, apesar do discurso sustentabilista, que tenta convencer-nos de que um fraudulento “efeito estufa” é causado pelo uso excessivo dos combustíveis fósseis, o domínio de áreas ricas em petróleo é uma questão de sobrevivência. Tudo isso torna claro que estamos sob risco iminente de perda da nossa soberania sobre a nossa Amazônia.
Não resta dúvida que esta situação colocou o Brasil no centro das atenções da cobiça das superpotências mundiais. Precisamos encontrar soluções factíveis para esta ameaça que poderá em pouco tempo transmutar-se em um sério problema. O Instituto Federalista, juntamente com o Instituto Sagres, está trabalhando na busca de soluções. Foram realizados dois simpósios sobre a Amazônia, um em 2019, em Brasília, DF, e outro em 2021, virtual. A proposta principal é a de sensibilizar a sociedade brasileira a respeito da gravidade do problema, que se avoluma a cada dia, assim como promover o diálogo amplo, aberto, democrático, acerca das soluções possíveis.
O Instituto Federalista têm defendido a tese da necessidade de implantação de um estado federal assimétrico no Brasil, já que a região amazônica tornou-se um ponto sensível do espaço nacional. Federalismo assimétrico implica o tratamento diferenciado para porções diferenciadas do país, porquanto, tratar com uniformidade as porções diferentes é apenas uma forma de manter o país manietado ao subdesenvolvimento e subserviente às superpotências atuais. Sendo o Brasil um país de extensão continental, é impossível, como a realidade tem mostrado cabalmente, que continuemos a tratar a região amazônica com a uniformidade legal com que se tratam as outras macrorregiões. Sendo uma área sensível, urge que medidas diferenciadas sejam adotadas tanto para a defesa quanto para o desenvolvimento.
Federalismo assimétrico implica o tratamento diferenciado para porções diferenciadas do país, porquanto, tratar com uniformidade as porções diferentes é apenas uma forma de manter o país manietado ao subdesenvolvimento e subserviente às superpotências atuais.
Entretanto, nos diálogos travados nestas importantes discussões, para evitar confusões, é imprescindível que façamos algumas distinções conceituais para que as propostas de soluções não venham a perder força devido a nossa incapacidade de pensar e ver com clareza a realidade. Muitas vezes o principio da solução encontra-se na iluminação dos termos e dos conceitos. Com uma tocha acesa iluminando é mais fácil encontrar o caminho.
Federalismo e Geografia
Pode parecer que entre federalismo e geografia não há qualquer relação, mas esta percepção é enganosa. A geografia é a ciência cujo objeto é o espaço geográfico, e inclui tanto o espaço físico quanto a sociedade que o habita. Obviamente não trata de cada um destes elementos separadamente, mas sim das relações de reciprocidade que estabelecem entre si. Quando se refere à sociedade obrigatoriamente estão implícitas as relações que indivíduos e coletividades estabelecem entre si, e entre estas as relações de poder, o que, por decorrência, leva a enfocar a distribuição da sociedade sobre o espaço e como cada grupo domina porções delimitadas. Se há reciprocidade entre sociedade e espaço, então isto significa que as diferenças geológicas, geomorfológicas e climáticas atuarão sobre as coletividades humanas, alterando-as de algum modo, inclusive na forma como se organizam politicamente. Portanto, sociedades que habitam porções espaciais muito diferenciadas deverão considerar com atenção tais diferenças o ao se organizarem politicamente, o que significa que deverão conformar o seu modelo de estado à realidade espacial existente. Entre várias razões, os estados federais assimétricos surgiram também para adequar a organização política às diferenças espaciais de um país.
A geografia é uma ciência muito importante, mas alguns dos seus paradigmas e conceitos ainda não estão completamente estabelecidos, o que faz com que haja alguma confusão entre os próprios geógrafos quanto a certos princípios, leis, constructos, conceitos e definições. Quando isso acontece, profissionais de outras áreas devem ter o cuidado de não tentar discorrer sobre estes temas, caso lhes sejam desconhecidos. Havendo necessidade de utilizar conceitos ainda cediços é necessário que aquele que ousa penetrar na seara alheia declare qual o sentido que desejar explorar dentre os vários possíveis, para simultaneamente mostrar respeito ao trabalho daqueles que se dedicam à área do conhecimento em questão e humildade, ao reconhecer as próprias limitações.
Distinção entre Território e Região
Existe uma confusão conceitual na ciência geográfica que cabe aqui esclarecer, segundo nosso particular ponto de vista, que é aquela entre Território e Região.
Espaço geográfico é um conceito central da ciência geográfica. Outro conceito importante nesta ciência é o de Território; este é considerado pelos geógrafos como um conceito-chave, juntamente com os de espaço, paisagem, região e lugar. Mas o conceito de Território não é exclusivo da geografia, pois outras ciências também se valem dele. De certo modo, isso provoca alguma confusão, pois o termo se torna polissêmico.
Sem a intenção de sermos peremptórios sobre pontos conceituais ainda em evolução, mas sim atendendo à necessidade de um consenso mínimo, ainda que provisórios, sobre pontos essenciais, lançamos aqui nossa maneira de entender a distinção entre os conceitos de Território e de Região.
O que ressalta no conceito de Território, como nota fundamental, são as relações de poder que se estabelecem no espaço físico; por isso, embora sejam considerados importantes, os aspectos geológicos, o relevo, a hidrografia, os recursos naturais do solo e do subsolo não figuram como elementos principais.
Assim, o Território é o produto do exercício do poder de uma sociedade sobre um espaço físico delimitado, o que, então, implica, de certa forma, a soberania. O território pode ser único, compacto, ou fragmentado, na forma de enclaves ou exclaves. A existência de um território independe da sua ocupação demográfica por uma sociedade, visto que o poder pode ser exercido de diversas maneiras, mesmo à distância. Contudo, a ocupação demográfica por uma nação reforça e legitima tanto a posse quanto o poder exercido. Dessa forma, o espaço físico é a base sobre a qual o poder é exercido, independentemente da ocupação populacional.
O que se pode deduzir, partindo dessa caracterização inicial, é que pode existir, e efetivamente existe, a ocupação do espaço físico de uma nação por outra. Neste caso a nação ocupada não teria um território, pois não estaria exercendo poder sobre o espaço físico que ocupa; muito menos ainda se poderia falar em soberania desta nação. Ela seria apenas uma nação vassala de outra, mais poderosa e capaz de impor sua vontade sobre aquele espaço e sobre aquela nação. Um exemplo dessa situação é o Tibet, ocupado pela China; outros exemplos são o Iraque e o Afeganistão, ambos ocupados em algum momento pelos Estados Unidos. No passado, a Inglaterra ocupou a Índia. Por fim, pode-se afirmar que Território é um conceito político-geográfico.
Sob o ponto de vista das relações de poder, o Território é uma parte do espaço físico sobre a qual uma coletividade humana exerce domínio ou influência, resultando daí o estabelecimento de áreas político-administrativas demarcadas por limites físicos, de alguma forma observáveis, e que incluem e excluem, marcando a pertença ou não a ele. Países, estados, municípios, áreas urbanas e rurais, bairros são todos territórios com escala diferenciada.
Sem dúvida, não existe estado-nação sem território, mas a recíproca não é verdadeira. Um território pode estar enclavado em outro território. É obvio que não existirão dois territórios no mesmo espaço físico; um estado-nação pode ter seu território fragmentado, contudo, isso não quer dizer que seja algo necessariamente ruim ou ilegal, pois as embaixadas, por exemplo, são consideradas pelo direito internacional como território de um estado dentro de outro, bem como as aeronaves e navios, com algumas restrições.
Da noção de relações de poder decorrem naturalmente as de domínio e de posse. Atualmente a posse não se dá somente como a simples ocupação populacional, porquanto a tecnologia permite o domínio à distância, sem presença física humana, como também pode dar-se pela exploração econômica, pelo domínio cultural de uma sociedade sobre outra.
Fatores de diferenciação
Conforme a nossa definição, Território é constituído pelo exercício do poder sobre um espaço físico delimitado. A primeira distinção a fazer é, portanto, entre limites e fronteiras. O limite é uma linha definida, demarcadora da exclusão e da inclusão do que território. Estas linhas demarcadoras têm de ser nitidamente reconhecíveis, tanto no terreno quanto no subsolo, no ar e no mar. O muro que separa o México dos EUA, ou o que separa Israel da Cisjordânia, área palestina autônoma enclavada em Israel, são bons exemplos. O território é demarcado por limites, enquanto a Região é demarcada por fronteiras, porém, estas, ao contrário dos limites, são fluidas, móveis, interpenetráveis. Um exemplo típico são as fronteiras entre países de línguas diferentes, pois embora existam limites observáveis no solo, há uma recíproca influência entre as duas línguas, formando certa confusão entre ambas, troca e uso de palavreado comum. Dentro de países continentais, por exemplo, a Rússia, o Canadá, os Estados Unidos e a China também existem fronteiras culturais, de modo que a cultura, os hábitos de um estado, de uma província, de um departamento, isto é, de uma região, acabam por penetrar outros e até compartilhar alguns dos seus elementos.
Outra diferença marcante é quanto à unidade interna de um e de outra. A Região, necessariamente, para existir precisa do elemento humano, isto é, da presença de uma população, enquanto em parte o território prescinde dela. Uma vez que exista uma população, ainda que em núcleos espalhados fragmentariamente pelo espaço físico, e esta população se constitua em sociedade, ao desenvolver relações entre estes núcleos, deve haver uma identidade que a diferencie de outras regiões. A identidade é um dos mais fortes fatores de diferenciação entre as Regiões. No plano econômico os diversos núcleos devem ter estabelecidos entre si fluxos de matéria-prima, produtos, mercadorias e financeiros.
O meio-ambiente natural, embora seja a base material sobre qual território e região se estabeleçam, apresenta importância diferente para cada um deles. Para o Território, o meio-ambiente conformará o modo de poder a ser exercido, porém, não será determinante, tendo em vista que a tecnologia atual supera qualquer dificuldade que aquele possa apresentar. Um meio-ambiente desértico exigirá um modo de exercício de poder diferente daquele de um meio-ambiente selvático. Já para a Região o meio-ambiente natural reveste-se de alta importância, porquanto determinará a distribuição da população no seu espaço físico, os padrões de existência das pessoas, a cultura local, e até certo ponto, o tipo de economia que poderá ser desenvolvida. O mesmo se pode dizer sobre os ambientes desérticos e selváticos no que tange à distribuição e manutenção de uma população.
Finalmente, a diferença é que embora Território e Região mantenham relações com seus entornos próximos ou distantes, e dependendo da capacidade dos agentes posicionados neles, também sofrem influências internas, na Região essas influências são muito mais marcantes, devido à força variável dessas influências e aos elementos internos que as reverberam, enquanto no território elas se fazem sentir de modo atenuado, embora, sem dúvida, existentes, e até certo ponto, perigosas.
Portanto, um Território pode constituir-se ou ser preenchido ou não por uma região. Embora em casos excepcionais uma região possa ultrapassar fronteiras nacionais, o ordinário é que as regiões estejam inclusas todos em um único país. É este o caso do Brasil.
Gestão Territorial x Gestão Regional
A partir do momento em que a questão do “território” adquiriu nova importância, a tendência foi a sua expansão para outras áreas. Os grupos em oposição na ciência geográfica, na disputa pelo predomínio do conceito de Território ou do conceito de Região, ampliaram a arena e incluíram a “gestão” como sujeito das suas propostas, isto é, é território ou região passaram a ser predicados da gestão. Tratava-se, e ainda se trata, de emplacar uma ideia de praticidade do conceito na disputa conceitual. Vence aquele que consegue legitimar suas aplicações. Assim, surgiram termos como “gestão territorial” ou “desenvolvimento territorial”. Lembremos, contudo, que o termo desenvolvimento regional é muito anterior, datando de quando ainda os dois conceitos não estavam em antagonismo e nem se confundiam.
De acordo com as distinções que acabamos de expor, por uma decorrência lógica, deduz-se que inexiste algo como “gestão territorial”; o que existe é o exercício do poder sobre um espaço físico delimitado. Como no estado-nação o poder manifesta-se sobretudo politicamente e este precisa de agentes, o que pode e deve haver é a gestão das ações de tais agentes sobre o espaço físico. Ao contrário da “gestão territorial” pode e deve existir a “gestão da região” ou a “gestão regional”, conseguintemente, tal entendimento nos leva para o tema do desenvolvimento.
Assimetria Contra a Uniformidade
O Brasil vive mais um momento da sua história em que nações poderosas tentam apropriar-se de partes importantes do seu espaço físico. No passado, devido ao acaso ou à competência dos brasileiros, todos os nossos inimigos foram derrotados ou afastados. Mas o futuro não é sempre uma repetição do passado. As ameaças que se apresentam agora são desafios à nossa geração. Devemos entregar aos nossos pósteros um país inteiro, e não pedaços dele.
O esforço para vencer os desafios do presente está se desenvolvendo em diversos campos. Não basta pegarmos em armas para enfrentar as nações agressoras, pois temos de lutar também no campo intelectual. Por isso se torna imprescindível esclarecermos conceitos importantes para que façamos uma leitura o mais correta possível da realidade atual. Por isso tentamos aqui distinguir os conceitos de território e de região, para que possamos entender a relação do federalismo com a questão da soberania brasileira sobre a Amazônia.
As diferenças regionais dentro de um país irão determinar a espécie de estado federal a ser constituído, se simétrico ou assimétrico. Vimos que diante das ameaças geopolíticas a que estamos expostos, com a Amazônia no foco da cobiça internacional, a solução mais adequada será a instituição de um estado federal pleno, isto é, um estado federal assimétrico, pois a Amazônia necessita receber tratamento diferenciado para atender as demandas do momento. Um estado federal que preza pela uniformidade constitucional, aplicando políticas uniformes em macrorregiões com grandes disparidades geográficas, resulta unicamente em um estado inflexível, que fatalmente nos levará a perda parcial, senão à completa, de um espaço extremamente rico do país. Neste sentido,
Embora superficiais, esperamos que nossas distinções tenham possibilitado um entendimento mínimo da importância dos conceitos para a busca de soluções adequadas à questão da nossa soberania sobre a Amazônia.